Elas que escrevem

Lúcia Centeno
7 min readJul 26, 2022

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Conheça escritoras que movimentam a cena literária de Porto Alegre

*A presente reportagem foi originalmente publicada na décima primeira edição do Blog de Papel, projeto final da disciplina Produção e Edição de Reportagem, ministrada pela professora Angela Ravazzollo no segundo semestre de 2020. Os dados foram mantidos conforme a publicação que você pode conferir em formato PDF clicando aqui. As artes abaixo foram produzidas por mim para a mesma atividade e o design original do impresso ficou por conta da Alice Germansen. Boa leitura!

Melissa e Fernanda Mellvee no lançamento do livro Outras Sem/Cem Palavras

As gaúchas Fernanda Mellvee, de 34 anos, e Melissa Mellvee, de 12 anos, além de mãe e filha são amigas, confidentes, parceiras e… Colegas de profissão? Isso mesmo! Como autoras publicadas, ambas participaram do livro Sem/Cem Palavras e da continuação da obra Outras Sem/Cem Palavras, ambos da editora Bestiário.

Fernanda e Melissa, assim como Cinara Ferreira, Amanda Leonardi e Maria Ottilia Rodrigues, são exemplos de mulheres ativas na cena literária de Porto Alegre com projetos online e lançamentos. As primeiras, mãe e filha, ainda criaram, em setembro de 2020, a página Autoras Minicontam, que tem o apoio da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul e da faculdade Feevale para divulgar a literatura de mulheres por meio da rede social Instagram.

“A Melissa participa de tudo”, diz Fernanda, que, junto da filha, elabora ainda outros projetos de literatura e audiovisual e planeja o lançamento de seu terceiro livro, uma coletânea de contos, e do livro de estreia de Melissa. O romance de literatura fantástica se chama Nós e os Dragões e já tem uma continuação, que se chama A lenda do pescoçudo de dois metros, em cuja história a jovem autora trabalha diariamente entre suas atividades escolares remotas.

Por esses e outros trabalhos realizados desde muito nova, Fernanda diz se orgulhar e também se inspirar na determinação da filha, parceira e colega. “Ela não para nunca de pesquisar e de escrever”, diz. Junto da mãe na entrevista feita por videoconferência, Melissa completa, entre risos: “E principalmente de planejar, eu nunca me canso”. A jovem escritora cursa o oitavo ano em uma escola da capital gaúcha e suas matérias favoritas são Português e História. Desde os 10 anos, quando teve sua primeira publicação no livro Sem/Cem palavras, Melissa, assim como Fernanda, escreve para o site Artrianon sobre cinema, séries e literatura.

Fernanda Mellvee, além de escritora, é licenciada em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestra em Estudos de Literatura pela mesma instituição. Seu primeiro livro, Amarga Neblina, foi finalista do Prêmio Kindle em 2017 e, além deste, a autora já publicou o romance Atrás da Cortina, uma série de contos em antologias e duas traduções de obras literárias.

Fernanda afirma ser uma autora feminista, assim como considera seu primeiro romance, Amarga Neblina, uma obra feminista. Melissa segue esse caminho tanto na criação de protagonistas femininas autênticas quanto na visão crítica da cena literária gaúcha que, segundo as escritoras, ainda discrimina a literatura de autoria de mulheres. “As mulheres têm menos espaço nesse meio”, relata Melissa. Fernanda conta que, em 2013, quando ingressou no curso de Letras e no meio literário, se preocupava que seus trabalhos, por versarem sobre mulheres e temas deste universo, não seriam valorizados, especialmente pelo público masculino.

“Parece que ainda a literatura escrita por mulheres fica um pouco à margem da literatura dita universal”, critica autora, cuja dissertação de mestrado, chamada A passagem do pessoal ao público na ficção de autoria feminina contemporânea e orientada por Cinara Ferreira, também aborda o silenciamento vivenciado por escritoras ao longo de suas carreiras e trajetórias pessoais. Em entrevista, Fernanda faz questão de destacar que a discriminação das escritoras perpassa um somatório de opressões além da questão de gênero, como preconceito a respeito de raça, classe, orientação sexual e nacionalidade.

É por isso que ela e Melissa desejam promover essas e outras narrativas e não medem esforços para que haja diversidade na página Autoras Minicontam. Fernanda afirma que hoje suas referências são variadas também por conta de escritoras que conheceu no projeto. E Melissa completa: “No Autoras Minicontam nós descobrimos essas autoras autoras muito legais, e foi ótimo”. A página teve início para divulgar e conectar autoras gaúchas, mas o interesse foi tanto que Fernanda e Melissa acabaram por receber e publicar contos produzidos por mulheres de outros estados. “Nesses textos a gente tem várias vivências: são várias mulheres, de várias idades, de vários lugares”, afirma Fernanda, que diz que pretende transformar o Autoras Minicontam em livro.

Sobre o atual contexto de isolamento social, mãe e filha afirmam que seus projetos pessoais e conjuntos, e especialmente sua escrita, têm auxiliado a deixar de lado o tédio e a tristeza e manter a saúde mental. Fernanda cita as palavras da filósofa, escritora e psicanalista Julia Kristeva, que faz parte da bibliografia de sua dissertação, para dizer que a escrita tem uma função terapêutica, uma vez que qualquer forma de arte vem para dar forma a ideias e pensamentos. Fernanda acrescenta: “A gente consegue ordenar um pouquinho do nosso caos a partir do caos que a gente coloca para fora”.

Melissa compartilha dessa opinião e tal processo também foi natural para ela, que, para surpresa de muitas pessoas no meio literário e fora dele, escreve suas próprias histórias desde que foi alfabetizada. “A maioria das pessoas diz: que fofinha”, diz Melissa, entre risos. Apesar disso, a escritora conta que gosta do meio literário e dos debates entre colegas, que Fernanda afirma ocorrerem de igual para igual: “Poucas vezes eu vi pessoas tão responsáveis, tão engajadas e tão comprometidas com a literatura como a Melissa”, elogia.

Ainda assim, mãe e filha destacam que a carreira incipiente de Melissa não provém de cobranças ou expectativas por parte da mãe, cuja maior participação foi ter despertado em Melissa o hábito da leitura. “Nunca foi uma cobrança sobre ‘eu sou escritora e você deve ser também’”, afirmam as duas. Inclusive a participação de Melissa na antologia de contos organizada pela mãe não foi planejada, mas de última hora por conta da desistência de outro autor um dia antes da entrega do manuscrito à gráfica e da disposição de Melissa para preencher as páginas faltantes.

“Eu disse para ela que não era fácil, tinha um formato, as cem palavras e a lógica própria”, explica Fernanda, que se surpreendeu com a produção ágil e extensa da filha. “Soube que um dos contos foi referência em aulas de criação literária porque ele é bem curtinho e muito bom mesmo”, relata. É com essa experiência de uma produção “aos 45 do segundo tempo”, como diz Fernanda, que Melissa recomenda às escritoras que estão começando que tenham coragem. “A gente nunca pode desistir. Mesmo que nem todo mundo seja reconhecido, a gente tem que escrever sobre o que gosta”, diz a jovem, cuja temática de trabalho são dragões e vikings.

Fernanda concorda. Ela já participou e ministrou diversas aulas e mesas sobre criação literária e inclusive está construindo uma série de aulas virtuais sobre o tema. A escritora fala da importância de manter uma periodicidade, treinar e ler muito. Fernanda recomenda utilizar o tempo para pesquisar referências que remetam à obra que está sendo produzida. “A gente tem que tornar o processo de criação o mais prazeroso possível porque muitas vezes essa caminhada é a nossa maior recompensa”, conclui.

Por mais letras

No livro Cem/Sem Palavras e Outras Cem/Sem Palavras, encontramos outras duas autoras que estão movimentando a cena literária de Porto Alegre: Cinara Ferreira e Amanda Leonardi estão na antologia e na ativa. Cinara, que foi uma das organizadoras dos livros, leciona e pesquisa na área de Teoria Literária na UFRGS, participa do coletivo Mulherio das Letras e pretende publicar seu primeiro livro este ano. Amanda é mestra em Letras pela mesma universidade, colabora com os sites NotaTerapia e Artrianon e já teve trabalhos de ficção publicados em antologias de editoras como Argonautas, Andross e Multifoco. Assim como elas, a jovem autora Maria Ottilia Rodrigues, que hoje é vestibulanda, também quer estudar Letras, e desde cedo se aventura por elas. Aos 19 anos, já publicou o romance Por causa de você, menina e a coletânea de poemas Savanália pela Bestiário, editora que também será responsável pelo terceiro livro de Maria Ottilia, outra coletânea de poemas, que será publicada em breve.

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Lúcia Centeno

Escritora de gaveta e desenhista de verso de caderno proseando jornalismo e literatura. Insta: @luciah.centeno