Desastre de Chernobyl: emissão e omissão

Lúcia Centeno
9 min readMar 30, 2020

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Como se deu a tragédia e quais foram os desdobramentos da crise do maior acidente nuclear do mundo? Reportagem de Bruna Galvão e Lúcia Centeno

A história

O acidente de Chernobyl aconteceu em 26 de abril de 1986 e foi o maior acidente nuclear da história. Nível 7, o mais alto da classificação.

Gráfico elaborado pelo The Guardian e Radiologyinfo

Ocorreu especificamente na Usina Vladimir IIvich Lenin (nome do fundador da União Soviética). A usina era localizada na cidade de Pripyat, cerca de 20km da cidade de Chernobyl, território que atualmente é ucraniano. Pripyat foi, à época, uma cidade maior e mais perto da usina, planejada e construída como residência para os trabalhadores. O acidente matou milhares de pessoas e contribuiu para o fim da União Soviética.

O acidente de Chernobyl aconteceu às 1h23min47s, portanto, na madrugada do dia 26 de abril de 1986. Aconteceu no reator 4 da usina de Chernobyl e foi resultado de falha humana, uma vez que os operadores do reator descumpriram diversos itens dos protocolos de segurança. Além disso, foi apontado posteriormente que os reatores RBMK (usados em Chernobyl e em outras usinas soviéticas) tinham um grave erro no seu projeto, o qual permitiu que o acidente acontecesse.

Tudo ocorreu durante um teste de segurança que estava em curso e resultou na explosão do reator 4. Com a explosão, dois trabalhadores da usina foram mortos e, na sequência, um incêndio no reator 4 iniciou-se e estendeu-se durante dias. A explosão deixou o reator nuclear exposto, e o incêndio foi responsável por jogar na atmosfera uma elevada quantidade de material radioativo.

Confira mais sobre a explicação técnica do ocorrido na reportagem “O que houve em Chernobyl?”, da Gazeta do Povo. Link AQUI

O Parque de diversão de Pripyat estava a alguns quilômetros da usina e seria aberto durante as comemorações do dia Primeiro de Maio de 1986

O Acidente

Quarenta segundos depois, um integrante apertou o botão que deveria desligar por completo o reator. Por um problema nas engrenagens, ao invés de desligar o procedimento fez o reator operar com toda potência. O súbito aumento da temperatura fez com que as substâncias nucleares penetrassem o fluído de resfriamento do reator e uma violenta pressão de vapor d’água fizesse pressão no interior. As últimas leituras antes da explosão mostraram que o reator operava a uma potência dez vezes acima do seu normal. A pressão colossal do vapor causou a primeira explosão, fazendo voar uma placa de 2 megatons do teto da usina.

A segunda explosão, dois ou três segundos depois, parou com os reagentes nucleares e deixou em pedaços a estrutura. Pedaços de grafite super aquecido entraram em combustão em contato com o ar. Sem instrumentos para medir a radiação, os trabalhadores da usina não souberam imediatamente que os níveis no interior do prédio seriam suficientes para matar uma pessoa desprotegida em 60 segundos. Dezenas de pessoas que trabalharam na usina durante o desastre morreriam de envenenamento semanas depois.

O vento levou o material radioativo lançado na atmosfera principalmente para o oeste e norte de Pripyat, e a radiação espalhou-se pelo mundo. Rapidamente, foram identificados altos níveis de radiação em locais como Polônia, Áustria, Suécia, Bielorrússia e até locais muito distantes, como Reino Unido, Estados Unidos e Canadá.

O mapa da radiação em 1996 (CIA Factbook/Wikimedia Commons)

Os primeiros a alertarem a comunidade internacional de que algo havia acontecido na União Soviética foram os suecos. Os questionamentos realizados ao governo soviético levaram-no a admitir que o acidente havia acontecido no dia 28 de abril. Até então, os soviéticos trataram de esconder o que havia acontecido, temendo os impactos disso para a reputação do país.

A população só foi avisada do acidente cerca de 2 dias depois, e só tiveram 2 horas para pegar tudo o que podiam para serem evacuados. Havia sido prometido que eles voltariam, porém isso jamais foi cumprido, deixando a cidade com aspecto de que “voltariam”.

Confira imagens de drone captadas em “Chernobyl: Drone Footage Reveals an Abandoned City” pelo Wall Street Journal. Link AQUI

A cidade de Pripyat, hoje abandonada, fica ao lado da Usina Vladimir IIvich Lenin

As perdas

O livro “Vozes de Tchernóbil” traz depoimentos de cientistas, soldados, operários e viúvas das vítimas do desastre. Link para trecho da obra AQUI

Pânico, pavor, medo, desespero, tristeza, luto, foram os sentimentos da população. E os efeitos da radiação são sentidos até hoje, com câncer e mutações. Todos os 27 bombeiros que estavam na hora do acidente, morreram devido aos efeitos da radiação. O incêndio foi extinto depois que helicópteros jogaram uma mistura de areia, chumbo e boro no reator em chamas.

Bielorrússia e Ucrânia foram os países mais afetados, com relatos indicando o aumento dos nascimentos de bebês com defeitos congênitos em ambos os países. Muitos outros países, até o Reino Unido, registraram anomalias climáticas e danos à flora por causa do ocorrido. Em entrevista à BBC, o vice-diretor geral do Centro Nacional de Pesquisa Médica de Radiação da Ucrânia, Viktor Sushko, descreve o ocorrido em Chernobyl como o “maior desastre antropogênico da história da humanidade”. Na reportagem que pode ser conferida aqui, o órgão estima que cerca de 5 milhões de cidadãos da antiga União Soviética, incluindo 3 milhões na Ucrânia e 800 mil na Bielorrúsia, tenham sido afetados pelo desastre de Chernobyl.

helicópteros jogaram uma mistura de areia, chumbo e boro no reator em chamas para cessar as chamas

Segundo dados da ONU, a explosão da usina espalhou material radioativo por uma área de 155 mil quilômetros quadrados. Ainda de acordo com a organização, 52 mil quilômetros quadrados de área agrícola foram contaminados e mais de 400 mil pessoas foram realojadas, mas milhões delas continuaram em suas terras e seguiram expostas.

Para conter a radiação, construiu-se, ainda em 1986, uma estrutura de concreto gigante que isolou a usina. Essa barreira foi chamada de “Sarcófago” e substituída em 2017. Relatório de 2005 indica que 5% dos gastos públicos da Ucrânia ainda estavam relacionados ao desastre de Chernobyl e números semelhantes são vistos na Bielorrússia. Os outros três reatores de Chernobyl seguiram em funcionamento. Em 1991, um incêndio fechou um deles. Os outros dois reatores seriam fechados em 1996 e 2000. Estima-se que o reator de número 4 ainda se mantenha contaminado em níveis elevados pelos próximos mil anos.

O “Sarcófago” foi inaugurado em novembro de 1986

No ano da tragédia, a sociedade vivenciava o período que ficou conhecido como Guerra Fria. Nesse contexto, os Estados Unidos e a União Soviética representavam os opostos do mundo polarizado com ameaça de uma guerra nuclear iminente. Por isso o governo soviético tentou encobrir o desastre de Chernobyl perante a opinião pública.

As autoridades manipularam as informações se referindo à radiação como “inferior a de um Raio X”. Na verdade, no primeiro dia de emissão, os habitantes de Pripyat já estavam recebendo uma dose de radiação cinquenta vezes maior do que a considerada inofensiva para seres humanos.

Os efeitos da radiação são sentidos até hoje, com câncer e mutações

Ao invés de serem evacuadas, entradas e saídas de cidades próximas a Pripyat foram bloqueadas e os habitantes tiveram suas linhas telefônicas cortadas. Toda a operação era vigiada de perto pela antiga KGB, agência de investigação e espionagem da URSS.

Além de civis que perderam suas vidas devido à omissão das autoridades, os chamados “liquidadores”, civis e militares que trabalharam diretamente na contenção do desastre, agiam sem acesso a equipamentos ou orientações adequadas. Segundo a ONU, 600 mil pessoas que faziam parte dos combates ao incêndio causado pela explosão e das operações de limpeza foram afetadas. Grande parte dos oficiais do governo ignorava os fatos mostrados por cientistas.

Confira o documentário O Desastre de Chernobyl, do Discovery Channel dublado AQUI

Liquidadores são os habitantes, civis ou militares, que se ocuparam em minimizar as consequências de Chernobyl

Desdobramentos legais

No âmbito legal, três pessoas foram consideradas culpadas: Viktor Bryukhanov (ex-gerente de construção e diretor da usina na época), Nikolai Fomin (engenheiro-chefe) e Anatoly Dyatlov (vice engenheiro-chefe). Os três foram condenados a dez anos de prisão.

Depois de cumprirem metade de sua pena, Bryukhanov e Dyatlov foram anistiados. Bryukhanov hoje mora em Kiev, capital da Ucrânia, e Dyatlov morreu em 1994 devido à exposição à radiação. Fomin, seu vice, tentou suicídio durante o julgamento e foi transferido para uma clínica psiquiátrica. Ainda no âmbito legal, a grave crise teve consequências mundiais. Até antes do desastre, a URSS não compunha o quadro de países da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), e a partir de então passou a fazê-lo.

Também foi a partir da catástrofe de Chernobyl que a AIEA definiu um dispositivo de “vigilância permanente” em caso de acidente nuclear. O sistema foi instaurado em 1989 e realiza sua vigilância de 24 horas diárias na sede da AIEA, em Viena. O objetivo desse sistema é dar um alerta internacional e coordenar esforços quando necessário, uma vez que as leis em relação a acidentes transfronteiriços, como o que aconteceu em Chernobyl, eram insuficientes na época. A missão foi adotadas cinco meses depois da catástrofe que efetou o globo. Segundo o então líder de estado, Mikhail Gorbachev, o desastre de Chernobyl foi o “início do fim” da União Soviética, que se dissolveu cinco anos depois.

O Parque de diversão de Pripyat tornou-se um marco do acidente nuclear de Chernobyl

Diz-se que em cada crise há oportunidade para um aprendizado. Com a tragédia de Chernobyl e seus desdobramentos, nos cabe aprender a valorizar a ciência, a humanidade e a ética. Isso porque, além das emissões tóxicas, há o impacto da omissão nas vidas que foram ceifadas.

Cena da série Chernobyl, da HBO. A série baseada no livro As Vozes de Chernobyl, de Svetlana Alexievich

Referências:

Outros vídeos:

Explicando a crise de Chernobyl. Link AQUI

Quem vive em Chernobyl? Link AQUI

Passei 1 dia em CHERNOBYL Link AQUI

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Lúcia Centeno
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Written by Lúcia Centeno

Escritora de gaveta e desenhista de verso de caderno proseando jornalismo e literatura.

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